Introdução
Diante de um mundo que viu nascer a internet e toda a tecnologia que nos conecta e possibilita-nos alargar os horizontes da existência, surgem novos problemas não só na relação entre as pessoas, mas também entre as pessoas e as “coisas” à sua volta, incluindo o que chamamos de natureza ou meio ambiente. Nesse mundo, acessar o conhecimento, de modo geral, não é uma dificuldade. Entretanto, tratamos de um mundo onde se jogam alimentos no lixo, enquanto pessoas morrem de fome; de um mundo em que se descobre a vacina para grandes doenças, mas se morre de gripe, por falta de acesso ao sistema de saúde ou por não se ter dinheiro para comprar remédios; de um mundo que eleva o discurso da diversidade, mas mata-se por muitos não aceitarem que existem pessoas diferentes na fé, na política, na afetividade, etc. A ética desponta como o imperativo, sem o qual nenhuma relação será mais possível, porque não será mais possível a vida!
Origens da Ética
Antes de falar sobre suas origens, é importante discorrer sobre o conceito de ética, cuja abstração, muitas vezes, leva-nos a confundi-la com outros conceitos também abstratos, como moral ou valor. Daí a importância da reflexão de Cohen e Segre (2002) sobre a distinção entre ética, eticidade, valores e moral. São conceitos materializados em ações práticas que configuram uma realidade social concreta, ou seja, incide na vida cotidiana das pessoas infringindo-lhes determinadas condições e limites de atuação, experiência, vivência, mas que partem de ideias (abstrações) e uma leva a outra. Portanto, são conceitos inter-relacionados, mas que não se confundem, mantendo cada um em seu escopo próprio.
Por questões didáticas, partiremos do conceito de “valor”, que nos conduzirá ao de “moral” e, depois, aos outros dois, “eticidade” e “ética”, nesta ordem. Isso não quer dizer que exista uma linha sucessória e progressiva desses conceitos, como se houvesse uma linearidade evolutiva na sociedade, a qual partisse do primeiro em busca do segundo e, assim, sucessivamente. Diferente disso, conseguindo compreender corretamente suas diferenças, é possível perceber que determinada ação pode ser moral sem ser, necessariamente, ética, tanto quanto ter, por princípio, um determinado valor que pode implicar numa ação imoral. Veremos, no intercâmbio desses valores, que há sempre um dilema em jogo, fruto dessa experiência de vida humana, desse ser que é híbrido entre natureza (caráter biológico) e cultura (caráter social).
Segundo os autores supracitados, o que define o termo “valor”, na concepção aqui tratada, é a adoção de determinado modelo como parâmetro para a conduta individual no meio social. Um valor expressa a base em que se assentam os significados compartilhados numa sociedade, sendo transmitido de uma geração a outra, de modo que os valores antecedem aos indivíduos, pois, sendo significados produzidos e compartilhados culturalmente, já existem antes do indivíduo nascer, imputando-lhe as noções que vão orientar seu comportamento depois. Dessa forma, o indivíduo é um intermediador de valores de uma geração para outra.
Marilena Chauí (2000) acrescenta que esses valores estabelecem certas regras de conduta, cujos parâmetros são definidos em torno do que é bom e do que é mal, portanto, do que é permitido e do que é proibido, que deve ser seguido por toda a sociedade. Daí a noção desses valores direcionando-nos para o entendimento da moral. Para Vasquez (1984), a moral é um conjunto de ideias tomadas como norteadoras das ações, ou seja, como princípios que orientam a conduta numa determinada sociedade ao longo de uma determinada época. O autor faz uma distinção entre o que coloca como sendo, de um lado, a “moral” e, de outro, o que seria a “moralidade”. A grosso modo, a moral seria o conjunto de princípios ou regras que balizam a conduta, a moralidade e a prática desses princípios, ou seja, a moralidade seria a moral em ação.
A moral efetiva, portanto, inclui não apenas normas ou regras de ação, mas também - como devida conduta - os atos que estão de acordo com eles. Ou seja, o conjunto de princípios, valores e prescrições que os homens, em uma determinada comunidade, consideram válida como os atos reais em que aqueles estão encarnados ou incorporados (VASQUEZ, 1984, p. 63).
Já no sentido inverso, o conceito de “eticidade” é uma condição prévia para a ética. Segundo Cohen e Segre (2002), a eticidade é uma capacidade que o indivíduo deve desenvolver, sem a qual não conseguirá ser ético, e diz respeito à característica de perceber os conflitos inerentes à ação humana, ou seja, é a capacidade de escolher a conduta mais adequada diante de uma situação que requer o equilíbrio entre razão e emoção, ou, ainda, entre interesses particulares e interesses coletivos, conseguindo ser coerente em seus princípios, lembrando que estes são aprendidos socialmente. Nesse sentido, os autores estabelecem três características que balizam a conduta ética: identificação de conflitos; o uso da autonomia e a consistência da ação pautada pela coerência da conduta (COHEN; SEGRE, 2002)
Marilena Chauí (2000), por sua vez, chama atenção para o fato de que a ética, exprimindo a maneira como a sociedade organiza-se a partir dos valores que define para si naquilo que deve e o que não deve ser feito, é cultural e como tal está marcada por determinadas condições históricas, políticas e econômicas (CHAUÍ, 2000). Portanto, a ética não é um código estático ao longo do processo histórico da humanidade. Como apresenta Adolfo Vasquez (1984), trata-se, antes, de doutrinas que remontam a longa data e que se transformam culturalmente, a depender da necessidade de responder a problemas novos, que surgem nas diferentes sociedades e em diferentes contextos históricos. Esses problemas surgem das mudanças sociais que imprimem novas relações entre os indivíduos e, assim, “as doutrinas éticas não podem ser consideradas, portanto, isoladamente, mas dentro de um processo de mudança e sucessão, que constituem adequadamente sua história” (VASQUEZ, 1984, p. 249).
Em toda moral efetiva, certos princípios, valores ou normas são incorporados. Ao mudar radicalmente a vida social, a vida moral também muda. Os princípios, valores ou normas nela incorporados entram em crise e exigem esclarecimentos ou substituições por outros. Surge, então, a necessidade de novas reflexões éticas ou uma nova teoria moral, já que os conceitos, valores e normas vigentes tornaram-se problemáticos. Assim se explica o surgimento e sucessão de doutrinas éticas fundamentais na relação com a mudança e sucessão das estruturas sociais e, dentro delas, a vida moral (VASQUEZ, 1984, p. 249-250).
Entre os autores elencados neste estudo, de modo geral, há a identificação de quatro momentos de análise da ética enquanto teoria fundamental: ética da antiguidade grega, a ética cristã medieval, a ética moderna e a ética contemporânea. É imprescindível notar que o estudo das teorias éticas chamadas de fundamentais estão rigidamente delimitadas em termos da sociedade ocidental. Esse é um ponto crucial para entender a ética como dilema da humanidade, na medida em que o pensamento e reflexão sobre o que é ser ético pauta-se, previamente, em códigos ou valores determinados por um tipo de sociedade (ou civilização), desconsiderando, portanto, os códigos de convivência de outros modelos de sociabilidade com sua ética própria. Apesar disso, a tradição filosófica, que é também eurocêntrica, trata das diferentes teorias éticas, com base nos modelos temporais que serão apresentados a seguir.
Ética da antiguidade grega
De acordo com Álvaro Valls (1994), os gregos, como Platão e Aristóteles, buscavam desenvolver, por uma conduta teórica e prática, uma ética vinculada à ideia do bem ou da felicidade. Para isso, era necessário uma prática cotidiana, isto é, nas coisas do mundo, desenvolver uma a virtuosidade numa vida bem vivida, cuja ideia de bem aqui consiste em priorizar as capacidade superiores, desenvolvendo e aprimorando suas habilidades para o bem viver (coletivamente). Para os estóicos, esse bem viver significava viver de acordo com a natureza, sendo esta uma ideia ligada à harmonia cósmica. Segundo o autor, essa ideia, posteriormente modificada, foi adotada no cristianismo como relativo a viver conforme as leis de deus, na medida em que deus teria criado as leis da natureza e, portanto, submeter-se às leis da natureza seria obedecer os preceitos divinos. Para outros, como os epicuristas, a ideia de bem estava ligada à satisfação de prazeres, em que viver bem era ter prazer, cuja moderação era algo inerente à vida, visto que o exagero podia fazer mal, gerando, então, desprazer. Assim é que a sabedoria deveria ser buscada em identificar o momento de gozar a vida sem que esse gozo terminasse por lhe infligir um incômodo, ou seja, a moderação era indício de refinamento e mostrava um bem viver, pois não significava impedimento, mas, antes, a possibilidade de sentir-se sempre bem no prazer da vida (VALLS, 1994).
A ética cristã medieval
No período medievo, em que há a predominância do pensamento cristão, ética e religião confundem-se, ou, antes, uma é regida pela outra. Nesse “espírito do tempo”, a ética pautava-se por princípios morais cristãos, fazendo com que as pessoas agissem, em sua vida cotidiana, segundo os preceitos ditados pela Igreja.
O lema socrático do "conhece-te a ti mesmo" volta à tona, em Santo Agostinho, que agora ensina que "Deus nos é mais íntimo que o nosso próprio íntimo". O ideal ético é o de uma vida espiritual, isto é, do acordo com o espírito, vida de amor e fraternidade. Historicamente, porém, muitas formas dualistas, que separavam radicalmente, por exemplo, o céu e a terra, esta vida e a outra, o amor a Deus e o amor aos homens, acabaram dificultando a realização dos ideais éticos cristãos. Nem sempre os cristãos estiveram à altura da afirmação do seu Mestre: "Nisto conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros" (VALLS, 1994, p. 44-45, sic).
A ética moderna
A partir do século XV, entra em cena a influência da antiguidade greco-romana e emerge a era conhecida como Renascimento que, junto ao Iluminismo, dão a pauta de um pensamento que vai consolidar-se na vida humana da Europa (e do resto do mundo com o processo perverso de colonialismo), cujo marco histórico é a Revolução Francesa. O ideário da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” reflete a emergência de um humanismo que enfoca o “indivíduo”, um ser universal dotado de direitos naturais, mas, sobretudo, é quando emerge o valor da liberdade, bem como as ideias do liberalismo político e econômico.
O grande pensador da burguesia e do Iluminismo, Kant, identificou bastante, como temos visto, o ideal ético com o ideal da autonomia individual. O homem racional, autônomo, autodeterminado, aquele que age segundo a razão e a liberdade, eis o critério da moralidade. Se Kant e a Revolução Francesa acentuaram de maneira talvez demasiado abstrata a liberdade, o ideal ético para Hegel estava numa vida livre dentro de um Estado livre, um Estado de direito, que preservasse os direitos dos homens a lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis do direito não estivessem nem separadas e nem em contradição (VALLS, 1994, p. 44-45).
Para o autor, nesta época, os códigos morais dados pela religião ou pela tradição foram sendo relegados ao âmbito do privado. O domínio de ideias de espiritualidade, seja nos termos dos clássicos, seja no aspecto do cristianismo, passou a ser algo que não diz respeito à ética das relações do espaço público, cabendo, ao indivíduo, lidar com isso de modo particular. Os assuntos mais gerais, que dizem respeito à coletividade, foram encapsulados no discurso ideológico.
A ética contemporânea
A discussão de Álvaro Valls (1994) data a contemporaneidade a partir do século XX, quando as ideias dos pensadores, até o século XIX, passam a influenciar e distinguir diferentes correntes de pensamento. Segundo o autor, o foco na discussão sobre a liberdade era, para a corrente do existencialismo, uma questão que se voltava, primordialmente, para a pessoa no seu aspecto mais individualizado. Nessa corrente, a ética é algo que diz respeito a valores, como a escolha, o ser autêntico, decidido, no âmbito mais pessoal e particular. Outra corrente, no sentido oposto e mais coletivo, o pensamento social da dialética marxista preocupa-se com uma ética voltada à justiça social. Dessa maneira, trata-se de um ideal ético que prioriza as relações sociais, buscando, sobretudo, uma sociedade mais humana, superando as brutais desigualdades econômicas. O autor chama atenção para o caso que, do ponto de vista ético, essas desigualdades, marcadas pelo tipo de economia desenvolvida na sociedade capitalista, ocorrem sob a égide do Estado:
Assim como em Maquiavel e Hegel a razão de Estado parecia infiltrar-se na reflexão ética como elemento complicador, também no pensamento revolucionário de esquerda surgem alguns problemas semelhantes. A relação entre os meios e os fins não parece um problema resolvido. Também não se entende muito bem que uma geração deva ser sacrificada hoje pelas gerações futuras, e há quem diga que a justiça futura não compensará jamais a injustiça atual. E assim por diante (VALLS, 1994, p. 46).
Nesse contexto, Valls (1994) ainda ressalta, utilizando uma comparação com a ética epicurista, que os países ricos se caracterizariam por buscar o prazer com a diferença de que, neste caso, não há moderação. Além do mais, salienta que, atualmente, esse prazer manifesta-se pela sociedade de consumo, ou seja, o prazer corresponde à posse de bens e propriedades. Em nome do “direito à propriedade”, comete-se muita injustiça, ao longo da história. Esse cenário gerou, também, a massificação da sociedade, por ideologias disseminadas pelos meios de comunicação de massa, religião e aparatos do Estado, caracterizada pela falta de ética, segundo o autor, já que não há mais moral que balize as condutas, isso porque a alienação causada pelo tipo de sociedade gerada no capitalismo, em que tudo vira mercadoria, não permite o desenvolvimento de indivíduos livres e sujeitos conscientes, que sejam capazes de atuarem como cidadãos autônomos e participantes (VALLS, 1994).
Conforme podemos notar, pelos excertos acima, a discussão sobre ética atualmente está amparada, primeiro, no pensamento oriundo do tipo de sociedade ocidental, cujo modelo se expande para outros cantos do mundo, devido ao processo de colonialismo perpetrado pelos povos europeus ao redor do globo; segundo, que esse modelo de sociedade engendrada pelo sistema capitalista e sua ideologia pautada no individualismo, liberalismo político e econômico, meritocracia, além, obviamente, de outros sistemas de pensamento, como machismo, patriarcalismo, racismo, cristianismo, entre outros, incute valores que naturalizam as desigualdades sociais de todos os tipos, fazendo com que, na complexidade das relações em jogo, a ética se torne algo vinculado a uma discussão que extrapola o conflito individual, acabando por configurar-se como um dilema social. É o que será possível perceber na discussão das próximas sessões.