Introdução
A política e a ética são fatores fundamentais para a vida social. Este estudo proporciona elementos para pensar esses dois conceitos no âmbito da prática individual que, no espaço público, requer a inter-relação com os demais sujeitos da sociedade. Com base nas teorias políticas e tradições filosóficas, podemos, a partir dos conteúdos aqui tratados, suplantar o senso comum e nos permitir elaborar nossas próprias ações no sentido de fazer valer o ideal democrático. Elucidaremos a noção de cidadania que, por sua vez, pressupõe a existência de direitos e deveres, assim como, entender que esses direitos não se realizam em uma sociedade altamente desigual. Entender a relação entre ética, moral e política nos ajudará a repensar os valores que moldam a sociedade e como esses valores podem e devem ser orientados para uma prática realmente democrática.
Direitos e Deveres dos Cidadãos
Ao falarmos de direitos e deveres dos cidadãos, identificamos de imediato uma temática circunscrita em um determinado contexto, qual seja, a vida em sociedade em que se pressupõe a relação entre indivíduos a partir da presunção do respeito a “normas” (jurídicas), cada um poderá exercer seus direitos devendo cumprir com suas obrigações. Podemos, assim, entender que se trata de uma sociedade de pessoas livres (cidadãos) que exercem sua cidadania e é regulada pelo Estado, uma sociedade democrática. Antes, porém, de adentrar especificamente o conteúdo sobre direitos e deveres dos cidadãos, entenderemos o que significa política e como ela pode ser contextualizada no mundo atual.
Os diversos sentidos da Política
O conceito de política assume diferentes sentidos, podendo se referir desde a uma situação genérica ligada à ideia da vida na pólis, até o sentido mais estrito, referente ao âmbito de atuação de instituições públicas em que desponta a figura do Estado e seus agentes. Essas diversas facetas do conceito de política podem ser demonstradas na seguinte passagem em que se apresentam diferentes usos do termo, tanto no âmbito das atividades de governo quanto em relação a instituições específicas (por exemplo, a política da igreja, do colégio, de uma empresa):
No primeiro caso (governo e administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder (CHAUÍ, 2000, p. 475).
Tomada no sentido relativo ao governo e administração pública, Marilena Chauí (2000) afirma que a ampliação das atribuições do governo levou à concepção do termo “política” como algo relativo a toda espécie de regência de uma coletividade social que envolva sua organização, administração, regulamentação e, obviamente, o poder, sendo atribuídos três significados inter-relacionados à política: o significado de governo (referente à ação dos governantes, agentes com autoridade para dirigir a sociedade, o Estado, ou às ações de coletivos contrários ou não à autoridade do governo e/ou à forma do Estado); o significado de uma atividade desenvolvida por especialistas e profissionais (neste caso, a política demarca uma distância da sociedade, uma vez que é encarada como atividade especializada, cujos agentes se ocupam unicamente com o Estado e o poder); significado de conduta duvidosa (resulta em uma visão depreciativa da política, cuja desconfiança pode ser em relação tanto aos atuais agentes quanto àqueles que se colocam como oposição).
A autora aponta para o paradoxo desses significados, afirmando que entre o primeiro e o terceiro, a política assume sentidos contraditórios, na medida em que o primeiro, referindo-se a algo geral, relativo à sociedade como um todo, diz respeito à ação de cada cidadão na esfera social, portanto relativos a leis e costumes, direitos e deveres, a possibilidade de manifestações reivindicatórias para contestar, resistir e até desobedecer, enquanto que, no terceiro sentido, a política fica atrelada a determinado grupo, afastando-a do alcance da sociedade, visto que é percebida como algo perverso, ou seja, como algo que ninguém quer se identificar. Esse paradoxo seria, no ponto de vista da autora, provocado pelo segundo sentido, que enclausura a política à ação de um grupo especializado para exercê-la (CHAUÍ, 2000).
Em outros termos, Karl Deutsch (1984) apresenta a natureza da política num sentido mais estrito, como algo que diz respeito à tomada de decisão na esfera pública da vida social. Para ele, a política diferencia a tomada de decisões em meios públicos da tomada de decisões no âmbito pessoal, bem como contrapõe-se também às decisões de cunho econômico, as quais gerariam influências impessoais como resposta (exemplo: dinheiro, escassez de recursos e condições de mercado). Dessa maneira, Deutsch (1984) estabelece que o setor público de uma sociedade é constituído pelo conjunto das decisões implementadas pelos meios públicos.
Segundo este autor, o sentido da política, aqui, assume um caráter mais específico do âmbito da esfera pública e está vinculada a situações de ordem prática, de ações efetivas para controle e autocontrole social, além de indicar, de modo um pouco mais evidente, os limites de separação da esfera pública, na qual há política, da esfera privada.
Já que política é o tomar decisões através de meios públicos, ela preocupa-se fundamentalmente com governo, ou seja, com a direção e auto-administração de vastas comunidades de povos. A palavra “política” enfatiza o processo de tomada de decisões no que diz respeito a atividades públicas ou produtos – acerca do que é feito, de quem o recebe e o quê. A palavra “governo” acentua os resultados deste processo em termos de controle e autocontrole da comunidade – seja cidade, estado ou nação. Qualquer comunidade maior do que a família contém um elemento de política (DEUTSCH, 1984, p. 8, grifos do autor).
Nos casos citados, o conceito de política vai ao encontro do que Noberto Bobbio (1998) apresenta ao resgatar seu significado clássico e as transformações pelas quais passou, configurando-se genericamente como algo que diz respeito às coisas do Estado, ou seja, o termo passou a ser usado, normalmente, para se referir a atividades que dizem respeito à pólis, ou, dito de outro modo, ao Estado. Apoiando-se em Hobbes e Russel, o autor acrescenta que se trata de um conceito intimamente ligado à questão do poder:
O conceito de Política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder. Este tem sido tradicionalmente definido como "consistente nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem" (Hobbes) ou, analogamente, como "conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados" (Russell). Sendo um destes meios, além do domínio da natureza, o domínio sobre os outros homens, o poder é definido por vezes como uma relação entre dois sujeitos, dos quais um impõe ao outro a própria vontade e lhe determina, malgrado seu, o comportamento (BOBBIO, 1998b, p. 954).
O autor chama atenção para o fato de que o poder, ou seja, o domínio de um sobre os outros, não seria um fim em si mesmo, seria antes um meio para se obter alguma “vantagem” ou algum efeito desejado, tal como busca-se dominar a natureza. Assim, o poder deve ser definido a depender do tipo de relação entre os sujeitos, como a posse dos meios pelos quais seja possível alcançar o objetivo, a vantagem que se deseja. Com isso, o poder político estaria ligado, portanto, ao domínio de um sobre outro, e não sobre a natureza, e poderia ser expresso nas várias formas de relação em que está presente autoridade e obediência, como exemplo, governantes e governados, senhores e súditos, Estado e sociedade civil, entre outras (BOBBIO, 1998b).
Bobbio coloca que para entender a especificidade do poder político, é preciso, antes, considerar outras duas formas de poder: o poder ideológico e o poder econômico. Este último, o econômico, é o poder que advém da posse de recursos que, em situação de escassez, permitem condicionar os que não os têm a determinadas atitudes, normalmente ligada à realização de algum trabalho. Já o poder ideológico tem por base a influência que ideias formuladas de uma tal maneira e disseminadas em certas circunstâncias e por meios específicos, por alguém considerado como autoridade legítima, que exerce sobre a conduta de outros. Com isso, o autor sinaliza que o poder político seria aquele ligado ao poder coator, no qual se tem a posse dos instrumentos para o exercício da força. E assevera que são essas forças, esses poderes combinados que fundamentam e justificam a manutenção de uma sociedade desigual, aquela cindida por classes (ricos x pobres), fruto do poder econômico, por nível de conhecimento ou influência (intelectuais x ignorantes), resultado do poder ideológico e pelo uso da força (fortes x fracos), consequência do poder político. De modo geral, uma sociedade dividida entre superiores e inferiores (BOBBIO, 1998b).
Embora reconheça que o poder da força seja primordial, Bobbio salienta que somente a força não é suficiente para se exercer o poder político, necessita, sobretudo, da monopolização do uso da força, mas também de outras características que lhe são concernentes. As características do poder político que o diferencia das demais formas de poder estão ligadas diretamente às consequências da monopolização das forças em um determinado território ou sociedade e são relativas: a) à exclusividade, que relativa à tendência de quem detém o poder político, acaba demonstrando, ao tentar não permitir, a formação e presença de grupos armados independentes, no âmbito de seu domínio, contendo e dispersando aqueles que porventura vinham se formando, bem como tenta conter ações de infiltração, ingerências ou agressões de outros grupos políticos estrangeiros; b) universalidade, entendida como a capacidade que somente os donos do poder político têm de tomar decisões e torná-las legítimas e eficazes para toda a sociedade, no tocante à administração dos recursos de todos os tipos, seja na sua distribuição ou destinação; c) inclusividade, a possibilidade de intervir, imperativamente, em toda e qualquer esfera da atividade dos cidadãos, podendo direcioná-los ao objetivo pretendido ou, até mesmo, evitar um fim não desejado, o que se torna possível a partir do uso do aparato jurídico, cujo conjunto de normas e leis destinadas aos membros da sociedade, ou mais especificamente aos funcionários especializados, conferem, aos detentores do poder político, a autoridade para interferir em caso de violação das leis vigentes (BOBBIO, 1998b).
Hanna Arendt (1985), por sua vez, acrescenta que nenhum governo consegue existir e se manter com uso exclusivo dos mecanismos de violência e explica que mesmo um ditador, que se baseia principalmente na tortura como instrumento de dominação, precisa de uma base de poder, nem que seja aqueles que o apoiam executando serviços de espionagem, sobretudo os que vão às vias de fato, efetuando a tortura propriamente dita.
Somente o desenvolvimento de soldados-robôs, os quais, como se mencionou anteriormente, eliminariam o fator humano completamente e, provavelmente, permitiriam a um homem apertar um botão e destruir quem bem entendesse, poderia transformar essa ascendência fundamental do poder sobre a violência. Mesmo a dominação mais despótica de que temos conhecimento, o domínio do senhor sobre os escravos, que sempre o excederam em número, não repousava em instrumentos de coerção superiores como tais, mas em uma organização do poder mais aperfeiçoada, isto é, na ‘solidariedade organizada dos senhores”. Homens isolados sem outros que os apóiem nunca têm poder suficiente para fazer uso da violência de maneira bem-sucedida (ARENDT, 1985, p. 31-32).
Dessa maneira, segundo a autora, para os governos, a violência teria natureza instrumental e, sendo um meio na busca por um fim, precisa de justificativas. Portanto, se o poder é algo intrínseco ao governo e este não se exerce somente por meio da violência, é necessário ainda outro elemento: a legitimidade. Por legitimidade, podemos entender, com base em Lucio Levi (1984), como um certo grau de consentimento que grande parte da sociedade concede ao soberano, garantindo a obediência automática do povo, sem que para isso seja preciso fazer uso da força, lançando mão dela somente em casos excepcionais. Nas palavras do autor, “[...] todos os poderes procuram angariar consentimento, de modo a se fazerem reconhecer como legítimos, transformando a obediência em adesão. A crença na legitimidade é, portanto, elemento integrador das relações de poder que se processam no âmbito do Estado” (LEVI, 1984, p. 103).
É nesse contexto do significado de política que situamos a questão dos direitos e deveres dos cidadãos, levando em consideração, portanto, as forças que envolvem o poder político, no sentido de coagir ou convencer os membros de uma sociedade e de como essas forças incidem sobre as pessoas, seja numa forma sentida como imposição ou como consentimento. A relação social, a partir da noção de direitos e deveres dos indivíduos, está transpassada pela noção multifacetada de política, especialmente pela ideia de poder político que envolve diferentes formas e instâncias da vida pública e privada e que se consolida na figura do Estado.
Cidadania: direitos civis, sociais e políticos (e os deveres)
A noção de cidadania nos remete a pensar na relação entre indivíduos de uma sociedade regulada pelo Estado por meio do seu ordenamento jurídico, mas é, sobretudo, um entendimento que pressupõe um contexto democrático. A noção de democracia foi mudando ao longo da história, conforme destaca Noberto Bobbio (1998a), foi se configurando como uma forma ou procedimentos para se constituir governos e para tomadas de decisões políticas, abrangendo, obviamente, toda a sociedade em questão. Apresenta-se, portanto, como algo mais do que uma simples questão ideológica. A democracia mostra-se, para esse autor, compatível com doutrinas cujo conteúdo ideológico é explicitamente distinto entre si, bem como com teorias inicialmente expressas e baseadas em alguma medida sob um aspecto nitidamente antidemocrático. Isso porque, assumindo um caráter mais de comportamento em vez de substância, aceitar essas regras, e não outras, pressupõe um direcionamento a favor de determinados princípios que são, por sua vez, próprios do ideal democrático. Como exemplo, a “[...] solução pacífica dos conflitos sociais, da eliminação da violência institucional no limite do possível, do freqüente revezamento da classe política, da tolerância e assim por diante” (BOBBIO, 1998b, p. 326).
SAIBA MAIS
Em Dicionário da Política, Noberto Bobbio (1998a) discorre sobre o tema da democracia apresentando desde as principais teorias clássicas e modernas até o significado formal e real no âmbito da ciência política contemporânea. A posição do autor sobre o tema pode ser verificada em entrevista disponivel em: youtube.com.
Nicola Mateucci (1998, p. 353) coloca que “[...] o constitucionalismo moderno tem, na promulgação de um texto escrito contendo uma declaração dos Direitos Humanos e de cidadania, um dos seus momentos centrais de desenvolvimento e de conquista, que consagra as vitórias do cidadão sobre o poder”. O autor menciona o contexto histórico da Revolução Gloriosa da Inglaterra (1689), das colônias américas contra o domínio inglês (1776) e da Revolução Francesa (1789) que teriam originado esse documento, salientando os problemas entre teoria e prática e a transmutação do conceito no decorrer histórico:
O teor individualista original da declaração, que exprimia a desconfiança do cidadão contra o Estado e contra todas as formas do poder organizado, o orgulho do indivíduo que queria construir seu mundo por si próprio, entrando em relação com os outros num plano meramente contratual, foi superado: pôs-se em evidência que o indivíduo não é uma mônada mas um ser social que vive num contexto preciso e para o qual a cidadania é um fato meramente formal em relação à substância da sua existência real; viu-se que o indivíduo não é tão livre e autônomo como o iluminismo pensava que fosse, mas é um ser frágil, indefeso e inseguro. Assim, do Estado absenteísta, passamos ao Estado assistencial, garante ativo de novas liberdades. O individualismo, por sua vez, foi superado pelo reconhecimento dos direitos dos grupos sociais: particularmente significativo quando se trata de minorias (étnicas, lingüísticas e religiosas), de marginalizados (doentes, encarcerados, velhos e mulheres). Tudo isto são conseqüências lógicas do princípio de igualdade, que foi o motor das transformações nos conteúdos da declaração, abrindo sempre novas dimensões aos Direitos Humanos e confirmando por isso a validade e atualidade do texto setecentista (MATEUCCI, 1998, p. 354).
Assim, a despeito de toda a discussão sobre os problemas políticos e conceituais, de modo geral, a partir desse documento, foi se configurando o que vem a ser entendido como direitos e por consequência, os deveres em uma sociedade democrática. Dada a complexidade dessa discussão e as diferentes situações a que se aplicam, assumindo noções distintas, os direitos são classificados em civis, políticos e sociais. Na descrição de Mateucci (1998), os civis dizem respeito ao indivíduo, ou seja, à liberdade de pensamento, de crença, de ir e vir, de negociar, de reunir-se, à liberdade pessoal. É garantido ao cidadão um escopo de arbítrio em que sua ação individual é lícita no limite de não violar o direito alheio, de modo que o Estado fica obrigado a não atuar de maneira impeditiva, ou seja, o Estado se abstém nesse âmbito. Os direitos políticos vinculam-se mais intrinsecamente à forma do Estado, ou seja, à configuração do Estado democrático baseado na representatividade, de modo que se configura a possibilidade de formar associações, os partidos políticos, ligados aos direitos eleitorais, de votar e ser votado e, de forma mais ampla, implica na liberdade de uma participação ativa no âmbito das diretrizes políticas, projeto político, para o Estado. Já os direitos sociais são aqueles ligados a condições básicas de vida devendo, diante das exigências de uma sociedade industrial, ser garantidos pelo Estado. São direitos relativos à dignidade dos cidadãos, como por exemplo, direito à moradia, à escola, saúde, trabalho, assistência etc.
Nesse sentido, apesar da problemática do conteúdo da declaração dos direitos humanos na sua origem e de, atualmente, ainda permanecer no plano conceitual, falta muito para se realizar na prática, por isso mesmo esse documento permanece como referência sob outras bases porque baliza os princípios norteadores da democracia que ainda não se realizou no mundo. A atualidade do referido texto pode ser vista em fatos como a luta por direitos civis, políticos e sociais que emerge em todo lugar no mundo. Se, de fato, esses direitos ainda não existem, pode-se lutar por eles a partir da própria noção de direitos que se difundiu no decorrer histórico. E essa luta aparece ainda no cenário político nacional e internacional, porque, apesar das transformações sociais pelas quais o mundo tem passado, incluindo a noção de cidadania, ainda não há garantia dessa condição de sujeitos de direitos respeitados e efetivados por todos definitivamente. Isso porque as relações de poder são ameaças que pairam e que impedem que assim o seja. Ameaças estas que podem ser perpetradas pelo Estado, mas também da própria sociedade, seja pelo conformismo ou consentimento, ou pela relação de exploração e desumanização da lógica capitalista (MATEUCCI, 1998).
Observa-se, a partir disso, que o significado latu senso de democracia traz um valor de liberdade que, modo geral, é desejado por todos. A liberdade de lutar por melhores condições de vida só é possível em uma sociedade democrática, e a garantia dessa liberdade se dá quando a noção de direitos é compartilhada pelos cidadãos que devem reconhecer em contrapartida quais são seus deveres. O grande dilema que surge nos processos histórico-sociais está ligado a esse limite entre o meu e o seu direito, que por conseguinte tem a ver com o meu e o seu dever, fundamental para o convívio social. É aqui que a tendência de dominação do ser humano, de um sobre o outro, acaba se sobrepondo e, tantas vezes, gera situações em que o autoritarismo toma conta e rompe o pacto democrático.
Em conferência no Quintal Amêndola, em maio de 2016, Marilena Chauí discutindo a política, entre outros temas, inevitavelmente abordou a questão da democracia na contemporaneidade, enfatizando seu caráter de conflito. Ela sinalizou que somente na democracia admite-se que a sociedade é plural, dividida e cada qual pode expressar-se, livre e publicamente. Dessa maneira, configura-se no único regime político que aceita e reconhece o conflito como algo intrínseco à sociedade, portanto é legítimo e procura instituir meios de emergir e expressar esses conflitos. A autora complementa, ainda, dizendo que as ideias de liberdade e igualdade, na forma de direitos civis, extrapolam os limites da regulamentação jurídica formal, uma vez que, sendo sujeitos de direitos, quando estes não lhes são garantidos, em que não existem de fato, presume-se garantida a possibilidade de lutar por eles, exigindo sua instituição. Isso seria o coração da democracia: a criação de direitos, que por isso mesmo está aberta a disputas, conflitos e, portanto, aberta ao novo (CHAUI, 2016).
A filósofa, então, expõe o que caracteriza um “direito”, permitindo, assim, contrapor a noção de direito em relação à carência, ao interesse e ao privilégio. Um direito é algo que vale para todos, “[...] é geral e universal. Ele é válido para todos os indivíduos, todos os grupos e todas as classes sociais” (CHAUÍ, 2016, on-line).
A intelectual especifica, inclusive, a questão das minorias dizendo que “[...] mesmo quando a gente fala no direito de uma minoria – o direito das mulheres, o direito dos homossexuais, o direito dos indígenas, o direito dos negros, etc – esse direito é universal porque ele é reconhecido como um direito pela sociedade inteira” (CHAUI, 2016, on-line).
Contextualizando a realidade brasileira, em outro trabalho, Marilena Chauí (1995) pontua que o direito não se realiza no Brasil, com tamanha desigualdade social, e ressalta que a ideologia autoritária que se exprime pelo funcionamento da política naturaliza as exclusões sociais. Segundo suas explanações, os índices que demonstravam tamanha desigualdade social no país não eram, e ainda não são, percebidos como inaceitáveis, ao contrário, a desigualdade no Brasil muitas vezes é considerada normal, como algo natural que assim o seja. A conclusão disso, para a autora, é que a sociedade brasileira se apresenta dessa forma como uma oligarquia, em que pouquíssimos (2% da população) detêm a parcela majoritária da renda nacional (92%), sendo o restante da renda nacional (8%), a soma da maioria da população (98%). Tal situação, cujos índices eram o retrato do Brasil em 1995, quando houve a publicação do artigo da filósofa, mas que mesmo no século XXI pouco mudou. Polarizou-se a sociedade em outros dois grupos: aqueles que sofrem a carência absoluta e, obviamente, estão nos estratos sociais mais baixos, as chamadas camadas populares, e aqueles que usufruem do privilégio absoluto, a elite dirigente (CHAUÍ, 1995).
E destaca o que considera os principais fatores que implicam na enorme dificuldade instituir, verdadeiramente, a democracia no país, quais sejam: a) a estrutura dos partidos políticos e seu funcionamento que seria descrita como oligárquica, o que impediria a real representação e participação, tanto em termos de idéia como de prática; b) a forte burocratização da estrutura do Estado, que frente à história sócio-cultural e política brasileira, acaba gerando a existência de um poder burocrático que tem por natureza uma essência antidemocrática; c) uma sociedade estruturada com base na polarização extrema entre a carência e o privilégio. Para entender o que a filósofa quer dizer com isso, a definição de carência diz respeito sempre a algo que é particular e específico, que não se confunde com um interesse, muito menos, torna-se algo universal, como num direito. Por sua vez, o privilégio não pode se identificar com um interesse comum nem se universalizar em um direito, senão deixa de ser privilégio (CHAUÍ, 1995).
É nesses termos que a autora explana sobre o assunto na conferência já mencionada, exemplificando a distinção entre carência e interesses de um lado e direito de outro, contrapondo-o ao que é um privilégio:
Por exemplo, alguém pode ter necessidade de água, um outro grupo, necessidade de comida, um outro grupo, necessidade do transporte, um outro tem carência de hospitais, um outro, de escolas. Há tantas necessidades e carências quanto indivíduos e grupos sociais e elas são sempre específicas. Um interesse também é algo particular e específico, dependendo do grupo ou da classe social que o defende. As necessidades ou carências, assim como os interesses tendem a ser conflitantes porque eles exprimem as especificidades de diferentes grupos e classes sociais. Um direito, porém, ao contrário das necessidades, carências e interesses, nunca é particular e específico. [...] a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito universal à vida. O direito de moradia ou de transporte manifesta algo mais profundo: o direito a boas condições de vida. Da mesma maneira, o interesse, por exemplo, dos estudantes exprime algo mais profundo: o direito à educação e à informação. Em outras palavras, se nós tomarmos as diferentes carências e os diferentes interesses nós veremos que sob eles estão pressupostos direitos. E um direito justamente por sua universalidade se opõe ao privilégio. Um privilégio é sempre particular e nunca pode se universalizar. Um privilégio que se universalize não é um privilégio. O direito é aquilo que vale para todos, o privilégio é aquele que é posse só de alguns. Onde houver privilégio, não tem democracia (CHAUÍ, 2016, on-line).
Disso se depreende que se a democracia é a criação de direitos, seu reconhecimento e garantia de sua existência de fato, a estrutura da sociedade brasileira, tal como se configura, como mencionado antes, é baseada em caráter oligárquico, com uma burocracia essencialmente antidemocrática e uma estrutura assentada na dicotomia carência/privilégio, que a impede de emergir. Não é possível uma sociedade com esses fundamentos ser verdadeiramente democrática. E não há, de fato, democracia sem direitos nos termos discutidos aqui.
Voltando à ideia do conflito inerente à democracia, a filósofa ressalta que a política não se restringe a determinadas instituições, tampouco ao Estado, sendo relativa à própria sociedade. É por isso mesmo que a democracia não se opõe ao conflito, entendido como diferentes interesses em disputa, cujo consenso deve ser negociado. Quando o conflito se torna confronto, abre-se mão da democracia, a qual, por sua natureza, está sempre aberta à novidade:
Justamente porque opera com o conflito, com a criação de direitos, a democracia não se confina a um setor específico da sociedade no qual a política se realizaria - o Estado - mas ela determina a forma das relações sociais e de todas as instituições. Ou seja, ela é aquele regime político que é também uma forma social da existência coletiva. A democracia, mais do que um regime político, se refere à sociedade democrática. Dizemos, então que uma sociedade, e não simples regime de governo, é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da República, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo que é condição do próprio regime político, ou seja, quando a sociedade institui direitos. (CHAUI, 2016, on-line).
Sendo a democracia uma instituição que cria direitos, é antes uma criação social e, portanto, trata-se, sobretudo, de uma atividade que é histórica, de modo que uma sociedade democrática está sempre passível de transformações, aberta ao tempo, ao novo, ao possível. Marilena Chauí (2016) salienta ainda que a democracia se faz pela ampla cidadania, não se definindo apenas por direitos civis. Em uma democracia social real, o sentido dos direitos é alargado, o que abre para “[...] o campo das lutas populares por direitos econômicos, direitos sociais, direitos culturais, opondo-se aos privilégios da classe dominante” (CHAUÍ, 2016, on-line). Assim, pode-se entender que a democracia, muito além de um regime político, é uma forma de vida social que requer de seus partícipes uma atuação pautada na plena noção e consciência de que são sujeitos de direitos, na mesma medida em que precisam cumprir com seus deveres para que seja possível uma vida coletiva baseada em princípios democráticos, humanos e humanamente possíveis.
Política e ética
O sentido da política, como elemento inerente à sociedade, coloca em evidência a conduta humana. O ser político, nesse caso, é todo e qualquer sujeito que faz parte da sociedade na relação com os demais sujeitos no espaço público. Nesse sentido, é preciso entender o que opera a conduta individual desse sujeito e como essa conduta vai configurando esse espaço público na inter-relação que confere à conduta social. Antônio Ozaí da Silva (2002, p. 4) afirma que “[...] na política não é apenas o interesse individual que está em jogo, mas também os interesses de grupos e coletivos expressados pelas ações dos indivíduos”. Interrogando se é possível a ética na política, o cientista político sinaliza de saída que a resposta não é simples, nem mesmo única, e orienta a reflexão:
De um lado, a exigência da ética enquanto componente da política expressa o desejo da sua moralização. Como a moral é essencialmente uma forma de comportamento relacionada com a consciência individual, seus critérios chocam-se com a esfera da política enquanto atividade coletiva. A política pressupõe ainda confrontos e conflitos entre interesses de grupos opostos e antagônicos, o que potencializa ainda mais o choque com os imperativos morais do indivíduo (SILVA, 2002, p. 4).
O autor segue o raciocínio dizendo que, de outro modo, a moralização da política traz à tona outra problemática que diz respeito à relação entre o público e o privado e remonta à antiguidade grega, dizendo que os gregos teriam inventado o espaço da política como uma esfera na qual se expressaria uma vontade coletiva, ou seja, um âmbito em que a ação humana fica submetida a uma vontade arbitrária em relação ao indivíduo, inclusive privando a vontade pessoal do governante sobre as instituições públicas. Nesse sentido, há uma separação entre autoridade pública, que seria antes um resultado da expressão do coletivo, e a autoridade privada, que seria a expressão do déspota ou chefe de família. Essa separação destaca a distinção entre os tipos de autoridade e sua natureza, de modo que a política seria a ausência da vontade individual sobre o coletivo, ou seja, ausência do despotismo (SILVA, 2002).
Ao falar de moralização, devemos distinguir os conceitos de ética e moral que concernem este conteúdo sobre política quando a entendemos pelos parâmetros da conduta humana, ou seja, a relação entre os sujeitos no espaço público estará pautada, sobretudo, nas regras que regem a vida social. Dessa forma, o “ser político” não se separa dos valores que balizam sua conduta individual, ainda que eles operem de forma distinta nos espaços públicos e privados. Esses valores são internalizados pelos sujeitos no processo de socialização e formam a base do que será considerado ético a partir do que é considerado moral.
Nesse sentido, situando a questão da moral em relação à atividade política, Adolfo Vazquez (1984) faz a distinção desses conceitos da seguinte forma:
Enquanto a moral rege as relações mútuas dos indivíduos, e entre eles e a comunidade, a política compreende as relações entre grupos humanos (classes, povos ou nações). A política também envolve a atividade de classes ou grupos sociais através de suas organizações específicas - partidos políticos - visando consolidar, desenvolver, quebrar ou transformar o regime político-social existente.[...] A atividade política implica, também, a participação consciente e organizada de amplos setores da sociedade, daí a existência de projetos e programas que estabelecem os objetivos de imediatos, de médio e longo prazo, bem como os meios ou métodos para alcançá-lo. Assim, embora existam também atos espontâneos de indivíduos ou grupos sociais, a política é uma forma de atividade prática, organizada e consciente (VAZQUEZ, 1984, p. 88, tradução nossa).
O autor explica que política e moral não podem se confundir, visto que a moral tem um âmbito específico que não se estende à política, e esta, por sua vez, não se reduz à moral. Por isso, é necessário que, sendo duas formas de conduta humana, elas devem ter relação mútua, mas mantendo suas características específicas, ou seja, não se fundem nem se confundem, não são absorvidas nem mesmo toma-se uma pela outra, pois são instâncias distintas.
Feita a distinção entre moral e política, como entender a ética nesse contexto? Marilena Chauí (2016) inicia sua conferência, já citada anteriormente, conceituando a ética a partir da definição do sujeito e da ação éticos. Segundo a intelectual, a ética requer a existência do agente ético cujas ações devem ser balizadas por um conjunto de valores que conjugue aquilo que pode ser considerado ético. Nesse sentido, esse agente ético é um sujeito que deve ser, em primeiro lugar, um ser racional, portanto consciente de si e daquilo que faz, deve ser livre para decidir por suas escolhas e deve ser responsável para responder por aquilo que escolhe e faz. Diante disso, depreende-se que o agente ético é definido por sua consciência ou razão, liberdade e responsabilidade. Pautando-se nessas características do agente ético, a filósofa expõe as características de uma ação ética:
A ação ética é balizada pelas ideias do bom e do mal, do justo e do injusto, da virtude e do vício. Isto é, por valores cujos conteúdos podem variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma sociedade, mas que propõe sempre que existe uma diferença intrínseca entre as condutas que se realizam de acordo com o bem, o justo e o virtuoso, e as condutas que não se realizam dessa maneira. Assim, uma ação só será ética se ela for consciente, livre, responsável. E só será virtuosa se ela for realizada em conformidade com o bom e o justo. A ação ética só é virtuosa se ela for livre e ela só é livre se ela for autônoma (CHAUÍ, 2016, on-line).
Distinguindo ética de moral, a autora reforça que a ética tem origem no grego e diz respeito ao estudo e à formação do caráter, a partir do termo ethos, que pode ser entendido como caráter de alguém, assim a ética se refere à formação desse caráter para que ele realize a ação virtuosa, ou seja, a ação livre, consciente, responsável. Já a moral, com origem do latim, significa os costumes, sendo que para “[...] os latinos a ideia era de que a formação do caráter consistia em educar cada um para se adequar e se conformar aos costumes estabelecidos pela tradição” (CHAUÍ, 2016, on-line). Voltaremos a essa problemática no próximo tópico.
Dito de outra forma e voltando ao contexto da ética e da política, podemos entender que esses conceitos, assim como a moral, são fatores sociais e, dessa maneira, não se restringem à consciência individual. O que significa dizer que apesar da moral se manifestar pelas atitudes e ações de um indivíduo, este age de tal maneira por uma exigência da sociedade. Dessa forma, não se pode isolar a política da moral, uma vez que a política, como ação humana, pauta-se, negando ou afirmando, em códigos morais. Ela é avaliada pelo comportamento e pela maneira das pessoas de concebê-la, entendimento este marcado pela moral do indivíduo. A política, inclusive, para ser legítima não pode abrir mão do consenso dos cidadãos e para tal o apela à moral se torna indispensável (SILVA, 2002).
Essa dimensão do impacto da moral sobre ação política é descrita por Bobbio (1998b) a partir dos conceitos weberianos de “ética da convicção” e “ética da responsabilidade”. Segundo o autor, é preciso identificar e diferenciar os sistemas éticos nos quais se movem o universo da moral, de um lado, e da política, de outro, quase fadados a não se encontrar. A seu modo, tanto a (i) moralidade da política quanto a (im)politicidade da moral são antes sistemas de um universo ético, cada qual movendo-se por princípios específicos, a depender da ação dos indivíduos:
Destes dois universos éticos são representantes outros tantos personagens diferentes que atuam no mundo seguindo caminhos quase sempre destinados a não se encontrarem: de um lado está o homem de fé, o profeta, o pedagogo, o sábio que tem os olhos postos na cidade celeste, do outro, o homem de Estado, o condutor de homens, o criador da cidade terrena. O que conta para o primeiro é a pureza de intenções e a coerência da ação com a intenção; para o segundo o que importa é a certeza e fecundidade dos resultados (BOBBIO, 1998b, p. 961).
Diante disso, resulta que o que se coloca como imoralidade da política é, na verdade, a ideia de uma moral diferente daquela relativa ao dever pelo dever. Na política, a moral se ambienta pela diretriz de se fazer tudo o que estiver ao alcance para que se cumpra com o fim proposto, de tal maneira que o julgamento da ação política será com base no seu sucesso ou fracasso. Desse modo, deparamos-nos com dois conceitos de virtude, o clássico, que seria a tendência para moral do bem, opondo-se ao princípio da utilidade, e outro, tido como “maquiavélico”, ligado à noção de virtude como sendo a característica principal para um ótimo dirigente, ou seja, o príncipe de Maquiavel, cuja força e sagacidade lhe garante a manutenção de seu domínio (BOBBIO, 1998b)
É importante salientar, aqui, que a noção de política, nesse caso, diz respeito à secularização das atividades do Estado no contexto ocidental em que a igreja católica perde o poder político e os Estados-nação vão se constituindo modernamente. Seguindo o pensamento do autor, a diferença que reside nos diferentes sistemas éticos está ligada, portanto, ao julgamento das ações. Dessa forma, a “ética da convicção” utiliza de critérios para julgar ações individuais, enquanto a “ética da responsabilidade” seria usada para o julgamento das ações coletivas, sejam praticadas por um grupo ou por um indivíduo em nome e por conta do próprio grupo. Nesses termos, a diferença desses sistemas éticos é correspondente à lógica que se aplica à ética quando relativo apenas um indivíduo e quando diz respeito ao grupo, de modo que o que serve para um (o indivíduo), não necessariamente se aplica ao outro (coletividade).
Bobbio (1998b) segue explicando essa diferença entre moral e Política, nos termos da primeira como ética individual e a segunda como ética de grupo, a qual está atrelada à ideia da “razão de Estado”, definida como conjunto de diretrizes a partir das quais as ações seriam justificadas por serem executadas pelo coletivo – Estado – como sua expressão máxima, e de modo algum se praticadas só pelo indivíduo, ou seja, individualmente, tais ações não se justificam nunca. Muitas vezes, são não apenas se justificam como também são motivos de exaltação, mas apenas se praticadas por quem exerça o poder em nome do Estado. Dito de outra forma, O Estado e o indivíduo têm razões diferentes de atuação, daí se pode perceber a diferença entre moral e política, a depender dos juízos que se lança mão para considerar uma ação boa ou má.
Para Bobbio (1998b), a razão política seria a razão de atuação do Estado, correspondendo a uma instância paralela e proporcional à razão da moral para o indivíduo. A política está para o Estado como a moral para o indivíduo, mas são duas razões com tendência a não se encontrar. É possível, porém, entender que a política, sendo a razão do Estado, configura-se em um aspecto da ética coletiva, na medida em que o Estado é sua expressão máxima.
Depreende-se disso que, conforme Marilena Chauí aborda, se a ação ética só pode ser livre e, para ser livre, é preciso autonomia, a ação política é, necessariamente, dialética. Por isso, a relação entre ética e política não assume uma única explicação e se apresenta bastante complexa, pela própria natureza social, que é diversa e na qual se expressam distintos códigos morais que moldam o caráter dos sujeitos de diferentes grupos.